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A TRANSFORMAÇÃO DAS IMAGENS E DAS ATITUDES PERANTE AS IMAGENS NO OCIDENTE

• A TRANSFORMAÇÃO DAS IMAGENS E DAS ATITUDES PERANTE AS IMAGENS NO OCIDENTE

• As imagens dos Santos e o crucifixo

• No princípio do século 11, o desenvolvimento e as inovações da arte e do culto Cristão, no Ocidente, ocorreram paralelamente a aparição das “heresias populares”que, desde sua origem, denunciaram todas as formas de mediação entre os homens e Deus instituído pela Igreja: os heréticos voltaram-se contra as cruzes, os crucifixos, as imagens e seu culto, as prerrogativas sacramentais do clero, ou ao culto dos santos e das relíquias. A rejeição da cruz é explícita desde o ano mil junto ao primeiro herege mencionado, Leutard de Vertus, depois por volta de 1017-1018 junto aos heréticos da Aquitânia que Adhemar de Chabannes denunciou, em 1028 em Monteforte, no Piemonte, segundo o testemunho de Landolfo Senior, ou após 1105 com Pedro de Bruys, contra o qual o Abade de Cluny Pedro, o venerável, refutou os argumentos. Na maior parte das vezes, a rejeição da Cruz pelos heréticos vai paralela à rejeição das imagens, como ocorre entre os cátaros e os valdenses.

• A contestação herética, sem dúvida, provocou por reação na Igreja as posições mais favoráveis ao culto e ao desenvolvimento das imagens religiosas, das quais se conhece aliás uma floração artística a partir do século 12. Ela também encorajou os clérigos a dar uma base teórica ao novo culto das imagens para conferir-lhe legitimidade.

• Um dos casos mais esclarecedores é o dos heréticos condenados no Sínodo de Arras em 1025, sob o episcopado de Geraldo de Cambrai. Esses heréticos contestavam a legitimidade da eucaristia e de outros sacramentos, como a penitência e o casamento, e queriam abolir as ordens eclesiásticas. O Bispo refuta seus argumentos ponto a ponto, em particular para justificar a veneração da Cruz, a imagem do crucificado e as demais imagens religiosas. Lembra que a cruz é o signum, o vexilum do Salvador: é ela que se evoca, mas é Ele que se adora. O exemplo vem de Santo André que, na hora do martírio na cruz, cantou em louvor deste instrumento de suplício que viria a ser completamente associado a Cristo: Salve crux, quae in corpore Christi dedicata est. (salve, ó Cruz, que foste santificada pelo corpo de Cristo). Emprestado à liturgia, O hino é aqui retomado como argumento contra os heréticos: de maneira significativa, ele se vale de um vocabulário do desejo amoroso O Bona cruz)[…] diu desiderata, solicite amata, sine intermissione quaesita (Ó boa Cruz (…) por tanto tempo desejada, solicitante amada, ininterruptamente procurada) que lembra a carta do pseudo-Gregório no século 8 a propósito das imagens.

• Como, Geraldo de Cambrai distingue a cruz do crucifixo — que leva a imagem do crucificado. E apresenta o que nomeia de ratio (razão): o crucifixo já tinha sido anunciado desde o antigo testamento na forma da serpente de bronze (números 21,8), que, já para João 3, 14, devia ser interpretada como uma prefiguração de Cristo os crucificado. A seguir o Bispo dá uma alia ratio (outra razão: a imagem do crucificado permite a edificação dos illiterate (iletrados), que, vendo pintada a paixão de Cristo, adorarão Cristo. Essa razão é simplesmente a mesma que Gregório dava para as imagens. Mas aqui, é para o crucifixo, Geraldo de Cambrai vai mais longe. Assim como Santo André ligou seus propósitos membros na madeira da Cruz para identificar-se completamente com Cristo, a vista da “imagem visível” do Salvador crucificado fará mais do que apenas instruir o povo, pois ” excitará o espírito interior do homem” e virá mesmo “inscrever-se no coração, de tal sorte que cada um reconhecerá em si mesmo sua dívida para com o Redentor. • *

• O Bispo Geraldo acrescenta, enfim: “pode-se ter o mesmo raciocínio a propósito das imagens e dos Santos que estão na santa Igreja” (similiter de imaginibus sanctorum ratiocinari licet, quase ideo in sancta ecclesia fiunt), e também em relação às da virgem, dos anjos, dos apóstolos e mártires, dos confessores e das virgens e dos demais santos: não são elas que adoramos, elas nos “excitam interiormente” à contemplação da Graça Divina, e as ações dos santos nos ensinam a virtude. Mas notemos a diferença que o Bispo estabelece entre elas e o crucifixo: mesmo se essas imagens, como a do Crucificado, suscitam a emoção da alma, não se inscreve no coração a exemplo desta última. Não haveria aí duas “razões” diferentes, a do crucifixo e a das demais Imagens? Parece que a introdução do crucifixo na categoria das imagens e, ao mesmo tempo, a distinção estabelecida entre as funções religiosas, conferidas respectivamente a esses dois tipos de imagens, são traços importantes da reflexão sobre as imagens elaboradas nos séculos 11 e 12.

• Entretanto, a reflexão não se desenvolveu somente como uma reação ao argumento contrário dos heréticos. No século 12, também se intensificou o debate teológico entre judeus e cristãos e a questão das imagens aí teve um lugar de destaque. Essa questão certamente não era o ponto central, e sim a recusa dos judeus em reconhecer o Messias, do qual decorrem todos os outros pontos de desacordo: o papel da virgem, a legitimidade da Igreja, a maneira de interpretar o antigo testamento. Do lado judeu, os tratados de polêmicas anticristãos aparecem na primeira metade do século 12. Quando concedem algum espaço para denúncia das imagens religiosas, lembram a interdição enunciada em êxodo 20,4 e acusam os cristãos de idolatria. A tradição polêmica é muito mais antiga do lado Cristão: remonta São Paulo e aos padres da igreja, e já tinha florescido na época carolíngia, mas intensificou-se consideravelmente no século 12, em que se identifica cerca de uma dúzia de tratados contra judeus. Pelo menos três, tudo de origem o monástica, dedicam-se a refutar, entre outros, os argumentos judaicos contra as imagens, o que aparece como um tema novo na controvérsia entre as duas confissões. Antes do século 12, só Agobardo (840) em seu tratado de judaicis superstitionibus (supertições judaicas), tinha sentido necessidade de refutar a acusação de idolatria pronunciada pelos judeus contra os cristãos ( podemos ainda acrescentar um texto breve do século 8 de Adammanus, Bispo de Iona, concernente ao ato sacrílego de um judeu em relação a imagem de madeira da virgem; mas, significativamente, o fato é apresentado como se tivesse passado em Constantinopla; Adammanus, De locis Sanctis, III, 5, PL 88,722 ET seq). O fato é de resto mais extraordinário porque ele próprio, como já se viu, tinha uma atitude de reserva com respeito às imagens cristãos: não estaria defendendo a ortodoxia e sua posição ao se distinguir dos judeus, mais radicais que ele? Por aí se vê a que ponto a questão da imagem desempenhou um papel sutil de identificação entre as religiões e, no interior da igreja, entre suas diversas correntes de pensamento.

• Dos três tratados antijudaicos do século 12 que evocam a questão das imagens, um é inglês, pouco anterior à primeira cruzada: a Disputatio Judei et com, de Gilberto Crispim de Westminster (1117); o segundo é francês o Tratactus de incarnatione contra judaeos, de Gilbert de Nogent (1124) e o terceiro é alemão: o Dialogus inter cristianum et judaeum, de Rupert de Deutz (1130).

• Este último, que refuta mais longamente a acusação de idolatria que os judeus imputavam aos cristão, deve ser posto em relação com outra obra contemporânea muito singular, a autobiografia de Hermann o Judeu, de Mayence, convertido ao cristianismo que depois veio a integrar a ordem de Prémontré. Com efeito, o problema da imagem e também a influência de Rupert de Deutz desempenham papel central nessa narrativa de conversão escrita por volta de 1150: quando Hermann sentia-se envolvido pela fé cristã, seu ímpeto foi afetado no dia em que, entrando pela primeira vez numa igreja cristã, deparou-se aí com uma imagem muito grande, que era um crucifixo. ele vai disputar com o abade Rupert de Deutz, que lhe expõe em detalhe a justificação Cristã das imagens e termina por convencê-lo de que não se tratava de idolatria. Então, Hermann não mais hesita em se converter.

• dessa maneira, dispomos de dois escritos de Rupert de Deutz, ou concernente a ele, a respeito da posição cristã perante os judeus e das imagens cristãs, que testemunham diferentemente suas concepções na matéria: um testemunho direto, em seu tratado, e um indireto, nas palavras que Hermann lhe atribui na autobiografia. Mesmo não sendo possível entrar aqui em todos os detalhes, o fato suficientemente raro de dispormos deslocamentos faz merecer algum exame.

• Nos dois casos, o debate tem a forma de disputa erudita, pois trata-se de diálogos referentes a autoridade das escrituras, exclusivamente veterotestamentárias, o debate se desenvolvendo a partir de uma base textual comum aos judeus e aos cristãos. Mas suas respectivas atitudes se mostram opostas, e se os judeus defendem uma interpretação literal, que leva a seguir à risca a interdição de fazer e de venerar as imagens, quanto à Rupert, com é normal, defende uma interpretação tipológica e cristológica do antigo Testamento. Essa interpretação me parece ser melhor, por ter um fundamento no próprio antigo testamento que não ignorou completamente as “imagens”, citando por seu lado, em conformidade como uma já muito longa tradição, os querubins da arca da aliança e a serpente de bronze.

• O mais interessante talvez seja a distinção que ele estabelece entre dois tipos de imagens como antes dele já tinha sido feito, mas com menos nitidez, o Bispo Geraldo de Cambrai. De um lado estão as imagens comuns dos santos, para as quais enuncia, diz ele, a ratio generalis, na tradição gregoriana, e que tem por função “ornar” o templo e lembrar (recordatio) a história sacra. De outro lado, distingue a imago crucifixi(imagen do Crucificado), que permite a quem a venera se identificar com Cristo sofredor. Essa imagem do Salvador, e só ela, tem uma função quase sacramental, e para descrever essa identificação Rubert utiliza o termo muito forte, adoptio, que, no latim dos cristãos, aplica-se ao batismo.

• No princípio do século 12, com Rupert de Deutz, chega-se seguramente a uma verdadeira teoria da imagem ligada sempre à concepção “mediana” de Gregório Magno, contudo somente para as imagens dos Santos: ela integrou a noção de transitus, mas aplicando-a unicamente à imagem de Cristo na cruz. A teoria de Rupert ilustra uma notável racionalização da imagem — o termo é do próprio Rupert —, mas equivaleu também a conter as funções da imagem em limites estritos.

• Exatamente na mesma época, o extraordinário desenvolvimento da iconografia cristã era, por sua vez, denunciado no próprio interior do clero, por aquele que foi senão o verdadeiro fundador da ordem cisterciense ou pelo menos seu principal inspirador, São Bernardo de Claraval. A Apologia a Guilherme de Saint-Thierry, crítica severa do modo de vida, da riqueza e também da arte de cluny, é bem conhecida. Interessa somente compará-la com os outros textos já analisados. O primeiro ponto a ser observado é que, uma vez mais, a questão das imagens é evocada num contexto e num tom polêmicos. Entretanto, aqui o adversário não é mais nem herege nem judeu, mas outros monges. O texto de São Bernardo impressiona, em segundo lugar, pelos limites sociológicos de seu campo de aplicação: se nas categorias do século e do claustro, identificadas respectivamente aos valores do corporal e do espiritual, reencontram-se os iletrados e letrados de Gregório Magno, apenas estes últimos interessam aos cistercienses. Proibidas nas igrejas e nos claustros, as imagens podiam ser toleradas para os clérigos seculares ou para os simples laicos, mas a Apologia não tinha a intenção de dizê-lo. Enquanto Gregório Magno, e também o beneditino de obediência tradicional Rupert de Deutz — da mesma época de São Bernardo — e Sugerir quando edificou a nova fachada de saint-Denis, aberta ao mundo laico, preocupavam-se com a religião dos laicos e reconheciam a utilidade que as imagens podiam ter para eles, disso o Abade cisterciense não diz uma palavra.

• Esse ponto de vista exclusivamente monástico explica em parte que o julgamento de São Bernardo a respeito das imagens pareça tão radical: é que ele não é compensado pelas observações habituais sobre as funções positivas das imagens destinadas aos iletrados. Sem negar a originalidade de São Bernardo, ela parece menos forte ao se considerar seu propósito porque, mesmo exclusivamente para o mosteiro, um Rupert de Deutz continua a assinalar a ligação privilegiada do monge e do Abade com a imagem por excelência que se oferece à sua contemplação: a do crucifixo. A vita prima de São Bernardo exaltará da mesma maneira, pelo viés do maravilhoso cristão, a devoção do Santo pela imagem do crucifixo. (cum devotissime adorabat […] Separats bracchis a cornibus crucis videbatur eumdem Dei famulum amplectantem ac astringere sibi (Enquanto adorava com grande devoção, desprendendo os braços da trave da cruz, parecia abraçar e estreitar contra si o (seu) servo […] (como o Santos encontrava-se prosternado diante do altar o crucifixo apareceu no solo diante dele o santo fosse a adorá-lo e o cobriu de beijos então Cristo soltando seus braços da Cruz passou em torno de seu pescoço),.

• SCHMITT, jean-claude, o corpo das imagens, São Paulo, EDUSC, 2007

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