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Aparições ou fantasmas? Agostinho e Evódio

Aparições ou fantasmas? Agostinho e Evódio

O bispo de Hipona, Agostinho (354-430), é o verdadeiro fundador da teoria cristã dos fantasmas. Esta apresenta três aspectos principais, que vão todos os três no sentido de uma forte restrição imposta às aparições dos mortos. Essas aparições são consideradas, senão impossíveis, pelo menos excepcionais; eventualmente, não é nem o corpo nem a alma do morto que aparece, mas apenas uma “imagem espiritual” do morto; essas “imagens espirituais” são com muita frequência introduzidas pelos demônios no espírito dos homens, especialmente nos sonhos, durante o sono: é preciso, portanto, desconfiar dos sonhos.

Já Tertuliano (160-230) combatera a ideia segundo a qual a visão de um morto permitiria ver sua alma mesmo. Tratar-se-ia antes de demônios fazendo-se passar por parentes dos vivos aos quais aparecem e que um exorcismo pode obrigar a confessar sua verdadeira natureza. Pode tratar-se de um “demônio pessoal” que o visitou o homem durante sua vida e levou a agir mal. Lactâncio (250-325), por seu lado, confundia em uma mesma reprovação a opinião do povo (vulgus), segundo a qual “as almas dos mortos vagam em torno dos túmulos e dos despojos de seus corpos “, e os ídolos, que são eles próprios “simulacros de mortos “. O verdadeiro Deus não tem necessidade de tais “imagens”. No entanto, fantasmas aparecem: mesmo Ambrósio de Milão — o próprio mestre de Agostinho — descreve com emoção um sonho no qual seu falecido irmão Sátiro lhe apareceu.

Agostinho levanta de maneira bem mais sistemática e ampla a questão dos fantasmas. Trata deles nos meandros de uma reflexão mais completa sobre a morte e os mortos, as visões e os sonhos, os anjos, os demônios e o santos. Notemos que uma parte do dossiê agostiniano sobre esse assunto é de natureza epistolar: seu interesse é, portanto, confrontar as opiniões de Agostinho com as de seus correspondentes Evódio (quanto a carta 158), depois Paulino de Nota (quanto ao tratado sobre os “cuidados a dar aos mortos”).

Seu correspondente Evódio retoma em uma carta um diálogo que é familiar a Agostinho e a ele a muito tempo. Mais jovem que Agostinho, também ele se converteu em Milão, depois seguiu o seu amigo em Roma e em Tagasta, da qual se tornou um dos primeiros monges, antes de tornar-se bispo de Uzális, perto de Utica. Foi já respondendo às suas perguntas que Agostinho compôs seus tratados sobre a alma (De quantitate animae) e sobre o livre arbítrio (De líbero arbítrio). O método do diálogo é sempre o mesmo: Evódio finge a dúvida (simulata dubitatio), para dar toda a liberdade a Agostinho de desenvolver seus argumentos. Para Evódio, as aparições dos mortos não causariam nenhuma dúvida, elas parecem mesmo muito numerosas e teriam por função anunciar acontecimentos futuros, que se realizam efetivamente. “Mais de uma vez” ele ouviu dizer que muitos mortos voltaram, tanto de dia como de noite, às casas que lhes eram familiares. Pessoas despertas os encontraram no caminho. Ao que se diz, muitos vêm em certo momento da noite aos lugares onde seu corpo está enterrado, isto é, principalmente às basílicas onde preces são ditas sobre as sepulturas. Evódio cita sobretudo o testemunho, digno de fé, de um padre muito santo que viu uma multidão de mortos saindo do batistério com corpos luminosos. Evódio diz ter feito uma verdadeira investigação, uma inquisitio em que todos os indícios concordam. Ele não consegue decidir-se a pensar, portanto, que tudo isso não passa de uma trama de fábulas : para ele, os mortos visitam os vivos em seus sonhos e mesmo quando estão acordados. Essas visitationes não são fantasmas (fantasia: a palavra tem uma conotação diabólica muito forte), são tão verídicas quanto ou são, nas escrituras, os sonhos de José. O próprio Evódio beneficiou-se dos anúncios, que se revelaram exatos, de três monges falecidos (Profuturos, Privatus e Servilius). Ele apela então à sabedoria de Agostinho para lhe dar um conselho, notadamente sobre o caso muito complexo de seus jovens secretário que acaba de morrer prematuramente aos 22 anos.

É preciso desemaranhar o fio com tanto embaralhado desse relato para reconstruir a cronologia rigorosamente estabelecida por Evódio, dos gestos rituais que acompanharam a morte do jovem e dois sinais que, sob a forma de visões e aparições, anunciaram e a ela se seguiram. Esses gestos e esses sinais revelam a coesão de uma microssociedade unida por esta morte e suas consequências: ela reúne pessoas bem vivas, outras que estão mortas, outras enfim que não tardarão a morrer. Esse meio é aquele em que vive Evódio, e ele compõe sua narração com base nas palavras dos que o cercam. É notável, contudo, que não fale em nenhum momento de uma aparição da qual se teria beneficiado pessoalmente, mas sempre das visões dos sonhos dos outros. Para maior clareza, distingamos as etapas sucessivas do relato.

1. Enquanto o jovem agoniza, um de seus discípulos, falecido 8 meses antes, aparece em sonho para anunciar que vem buscar seu amigo. 2. no dia mesmo de sua morte, o jovem chama seu pai, que é Padre, e, por três vezes, troca com ele um beijo de paz, exortando-o a juntar-se a ele em breve, na morte. Esse voto vai realizar-se muito depressa. 3. Mal o jovem secretário de Evódio morreu, um outro “homem” — provavelmente um morto, mas sua identidade não é esclarecida —, tendo na mão um ramo de loureiro e um escrito (tampouco se sabe de que escrito se trata), aparece na mesma casa a um velho semidesperto. Embora misteriosa, essa aparição deve significar que o morto vai ser a salvo. 4. Com efeito, enquanto Preces são organizadas durante três dias para salvação do defunto, desde o segundo dia uma viúva de vida Santa, Urbica, vê em sonho um diácono, ele próprio falecido 4 anos antes. Ele está preparando um palácio cintilante com prata, a fim de ali acolher o jovem secretário falecido “na antevéspera”. Entrega-se ao trabalho em companhia de servidores de Deus, virgens e viúvas, enquanto um velho brilhante de brancura (senex candidatos: é o próprio Deus?) Ordena a dois seres igualmente brancos (anjos) que tirem o jovem de seu sepulcro e o conduzam ao céu. Essa visão Celeste confirma então o destino bem-aventurado do morto . 5. Enfim, no terceiro dia, o próprio morto aparece em sonho a um de seus irmãos, que lhe faz uma série de perguntas: ele sabe que está morto? Ele responde afirmativamente. Foi recebido por Deus? (Sim.) Que quer ele? “Fui enviado”, diz, “para buscar meu pai.” Este é um padre que, em companhia do velho bispo Theasius, tenta consolar-se no mosteiro da perda do filho. O que sonha desperta e conta sua visão ao bispo, que hesita em perturbar o padre com tal notícia. Como foi anunciado, o pai morre 4 dias depois da visitatio de seu filho, ou seja, 7 dias depois da morte deste. Essa série divisões oníricas compreende pelo menos três aparições de fantasmas diferentes (o diácono morto a quatro anos, o discípulo falecido 8 meses antes e, enfim, o próprio jovem), que têm todas a mesma função: seja anunciar a alguém a morte próxima de uma outra pessoa (o jovem, depois seu pai),seja revelar o futuro do morto no além (é o caso do jovem, que está salvo). Esses mortos informam os vivos sobre a morte e os mortos, mas não lhes pedem sufrágios, ainda que o joven exprima sua gratidão pelas preces que seus amigos disseram por sua salvação. Essa é uma diferença notável em relação aos fantasmas da idade média central.

A carta de Evódio inscreve também as revelações do morto em um espaço particular, o das sepulturas cada vez mais concentradas nas igrejas, perto dos túmulos dos Santos (ad sanctos). Qual é, a nas palavras de Evódio, a parte simulata dubitatio? É difícil adivinhar precisamente sua convicção íntima. Agostinho, em todo caso, dificilmente podia aceitar tudo o que Evódio lhe apresentava como certo. Avalia-se isso por sua resposta a uma outra carta, a de Paulino de Nola, que analisaremos em outra ocasião. Schmidt, Jean-Claude, os vivos e os mortos na sociedade medieval São Paulo: companhia das Letras, 1999.

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