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Nascimento do milenarismo Rumo ao decreto de Gelásio

Nascimento do milenarismo

Rumo ao decreto de Gelásio

Podemos verificar através de textos e documentos da Igreja primitiva que, as heresias e interpretações equivocadas do Apocalipse sempre estiveram presentes nas mentes fantasiosas de todas as épocas, em alguns momentos podemos trazer à memória imagens que lembram a revista sentinela dos testemunhas de Jeová, ou as pregações fantasiosas da senhora Ellen G. White que inspirou os adventistas do sétimo dia, com suas pregações apocalípticas com seu imediatismo a cada século, veremos através desse estudo que os erros que levam às heresias são cíclicos, sempre se repetem, mas a Igreja sempre tem sua resposta através do magistério da Igreja e do sumo pontífice. A tradição milenar manifesta-se ainda no século IV, e de maneira quase pedagógica, nas instituições divinas dos apologistas Lactâncio (260-325 ac), mestre de retórica pagão convertido ao cristianismo e preceptor do filho de Constantino. Suas instituições divinas são a primeira tentativa de exposição em latim do conjunto da religião cristã, e utilizam os oráculos sibilinos para validar perspectivas milenaristas. Lactâncio julga que o grande dia de Deus está próximo e que o termo 6 mil anos não está distante. Como todos os seus antecessores, ele se refere ao salmo 90: “diante de teus olhos, senhor, mil anos são como um dia “, e prossegue:

Assim como Deus trabalhou durante 6 dias então grandes obras, assim também é necessário que ao fim do sexto milénio toda maldade desapareça da terra, que a justiça reine por mil anos e que haja tranquilidade e repouso dos trabalhos que o mundo já suporta a muito tempo.

Todavia, anos terríveis precederão o reinado terrestre de Cristo, conforme as previsões do Apocalipse: as colheitas não amadureceram mais, os animais perecerão, as estrelas cairão do céu. A seguir, Jesus virá julgar o anticristo e os justos ressuscitarão. Será como o retorno aos Saturnia regna [reino de Saturno], a idade de ouro dos antigos. Então “tudo será calmo e Pacífico”. A sibila Eritréia posta em cena por Lactâncio pode anunciar, retomando os termos de Isaías: “Deus fez a cidade que ele desejou mais reluzente que os astros […]. Os lobos e os cordeiros comerão juntos nas montanhas, os leopardos pastarão com as cabras […], os dragões repousarão com as crianças pequenas”. Lactâncio defini ainda:

Após a ressurreição, o filho de Deus reinará mil anos entre os homens e os governará por um governo muito justo. Os que então viverem não morrerão, mas durante mil anos engendrarão uma multidão incalculável; quanto aos ressuscitados, eles presidirão aos vivos como os juízes. Então o sol se tornará sete vezes mais quente do que agora. A terra manifestará sua fecundidade e produzirá espontaneamente colheitas abundantes. O mel emanará das montanhas. O vinho ocorrerá nos regatos. O mundo viverá enfim na alegria, livre do império do mal. Os animais não se alimentarão mais de sangue. Ei-nos aqui “em pleno messianismo temporal no interior do cristianismo” Lactâncio insiste:

Deus dará então aos homens uma grande alegria, pois a terra, as árvores e os imensos rebanhos de ovelhas darão aos homens o verdadeiro fruto, o vinho, o mel mais doce, o leite mais branco e o melhor trigo que os mortais podem ter. […] A terra dos justos será Santa, produzirá todas as coisas em abundância, bebidas suaves manarão das rochas, e um leite de vida delas escorregar para todos os justos.

Essa terra abençoada e sem mal ser assim uma terra de delícias.

Em seu tempo, harmonizava-se ainda Lactâncio, quanto aos temas milenaristas, com a teologia oficial da igreja? No século III, Orígenes já havia condenado quiliasmo >( quiliasta ou quiliasta, é definida a uma doutrina ou crença religiosa própria e característica de um grupo de sectários ou heréticos chamado Chiliasts, que eram os seguidores, adeptos ou simpatizantes chamado milenarismo que Jesus Cristo voltará a reinar na Terra por mil anos. Em termos severos, atacando a inépcia e as concepções quiméricas de espírito simples que recusavam o trabalho intelectual e preferiam sonhar ao interpretar as escrituras. A tomada de posição de Orígenes suscitou um debate em Alexandria entre seu discípulo Dionísio e o chefe local dos milenaristas, Corakion.. Este, após uma discussão de três dias, admitiu sua derrota; “em presença de todos os padres que escutavam, ele prometeu e nos certificou que dali por diante não mais abraçaria essa opinião, que não mais a discutiria, […] Que havia sido convencido. Dionísio completou seu triunfo redigindo uma refutação em regra do milenarismo, o repromissionibus [das promessas], livro onde não hesitava em declarar apócrifo o apocalipse de São João. Na verdade, “o livro das revelações” foi mantido no cânone, mas não sem dificuldade e depois de rejeitada todas as leituras demasiadamente literais. O milenarismo estava em via de marginalização. No fim do século III e início do IV, Vitorino de Pettau, morto como Mártir sobre Diocleciano (em 303 ou 304), havia ainda manifestado tendências quiliastas, mas São Jerônimo remanejou suas conclusões no sentido oposto.

Santo Agostinho (354–430), por sua vez, tomou posição contra o milenarismo. Num primeiro momento, porém, inclinara-se em favor do apocalíptico tradicional. Ele confessa, no fim da vida, em a cidade de Deus: “Nós também partilhamos outrora essa opinião”. De fato, no sermão 259 ele parecera esperar um milênio sabático. Dizia:

O sétimo dia significa o repouso futuro dos Santos na terra. Pois o senhor reinará na terra com seus santos, como dizem as escrituras, e nela terá sua igreja, na qual nenhum mal penetrará, afastada e pura de toda mancha do mal. A Igreja se revelará então com grande clareza, dignidade e justiça. Então, não haverá prazer em enganar, em mentir, em ocultar o lobo sob a pele da ovelha. […] Estamos [agora] no sexto dia. […] Mas quando o sexto dia tiver passado, depois que tiver soprado o vento que separa, o repouso vira; e os santos e os justos de Deus terão o seu sábado […] [e] quando estiverem terminadas e consumadas as sete idades do mundo que passa, e voltaremos àquela idade imortalidade e àquela beatitude que o homem perdeu.

Essas afirmações remetem claramente ao esquema milenarista clássico: seis dias de duro “trabalho” serão seguidos do “repouso” do sétimo dia em que Deus reinará na terra com seus santos. Depois virá o oitavo dia que não mais terá fim. Os eleitos serão então encaminhados para aquele além, do colegiado que nenhuma olho o viu e nenhum ouvido ouviu. Posteriormente, Agostinho abandona essa perspectiva e juntasse as posições de um outro africano, Ticônio (390), que interpreta o Apocalipse como significando a vitória de Cristo desde a encarnação. O milênio torna-se então o reinado da Igreja cristã. Ticônio escreve: “Os Santos reinarão mil anos, isto é, no século presente […] a Igreja está destinado a reinar mil anos neste século até o fim do mundo”. Uma das razões que afastam Agostinho do milenarismo é o frequente desvio deste para a exaltação dos prazeres terrestres — uma tentação te podemos verificar em A Cidade de Deus, o bispo de Hipona é muito claro a este respeito:

Essa opinião [dos quiliastas] poderia de alguma maneira ser tolerada se admitisse que o Santos obtém nesse sabá, pela presença do senhor, algumas delícias espirituais. Pois nós também partilhamos outrora essa opinião. Mas, mando se ouve dizer que os que forem ressuscitados se entregarão aos festins carnais mais desmedidos, nos quais haverá tanta comida e bebida que, longe de guardar com moderação, irão mesmo além do que se poderia imaginar, então seguramente só pode haver homens carnais para acreditar em semelhantes coisas.

Recusando-se a afiançar tais perspectivas de futuro, Agostinho adota num segundo momento uma posição próxima da de Ticônio. A Encarnação do Salvador, pensa, marcou o começo dos mil anos de seu reinado terrestre (mil, aliás, podendo significar um número perfeito). Esse reinado será seguido do juízo final e do advento da cidade Celeste que não terá fim. Hoje, os que seguem a lei de Cristo já ressuscitaram com ele. Eles buscam e desfrutam desde agora as coisas do alto. Todavia, desse reino do milênio que está ainda de “em estado de guerra” e nele se está “às voltas com o inimigo”; e será assim “até chegar-se àquele reino de toda paz onde reinar-se-á sem inimigo”. Não obstante, “desde agora a Igreja é o reino de Cristo”. Agostinho portando recusa doravante entender os mil anos mencionados pelo Apocalipse “num sentido carnal”. Observando que João, “à maneira dos profetas”, misturou sentido próprio e expressões figuradas, ele assegura que “um espírito atento e tranquilo” deve poder “chegar ao sentido espiritual por úteis e Salutares esforços”. O sentido literal só pode ser o quinhão da “preguiça carnal” e de “inteligências incultas e não exercitadas”.

A posição final de santo Agostinho e sua rejeição do milenarismo durante os primeiros séculos da igreja só se compreende no interior de um debate mais vasto entre inspiração e instituição. Os que colocaram a primeira antes da segunda privilegiavam a profecia, a espera próxima do fim e do desprezo da existência presente. Ele se preparavam para o martírio, que em breve seria seguido pelo reinado dos santos numa terra regenerada. Os segundos, ao contrário — e sobretudo a partir da “paz da igreja “ de 313 que marcou o fim das perseguições, viam a instituição eclesiástica instalar-se no tempo e consolidar suas estruturas para adaptar-se à nova situação. A hierarquia, agora escorada pelo poder imperial, passou a suspeitar dos anúncios escatológicos dificilmente controláveis que só podiam desestabilizar os fiéis e debilitar a autoridade do magistério. Em 1874, Frédéric de Rougemonte, um teólogo suíço resolutamente milenarismo, escreverá em Les deux cités [as duas cidades]:

Ao repudiar sua fé primeira no reinado de mil anos, Agostinho causou a igreja um mal incalculável. Ele sancionou com a imensa autoridade de seu nome um erro que a privava de seu ideal terrestre e que acabou por mergulhar as nações cristãs num desespero ao qual o socialismo que é arrancá-las à sua maneira.

Deixemos a seu autor a responsabilidade dessa visão histórica. Mas é verdade que a partir de Agostinho o milenarismo é marginalizado na igreja. No concílio de Éfeso, em 431, fala-se das “divagações e dogmas fabulosos do infeliz Apolinário”, um quiliasta da época. Essa marginalização crescente não impede ao asceta Comodiano, originário de Gaza e instalado nas margens do Ródano por volta de 450, predizer que os godos vão destruir Roma e exterminar todos os ímpios para dar lugar a Cristo e às 10 tribos dispersas de Israel. Estas vivem agora escondidas no lugar secreto, mas reaparecerão para libertar a terra. Então,

Retornará a paz e suprimidos os males, o rei justo e vitorioso submeterá os vivos e os mortos a um julgamento terrível e colocará todos os povos pagãos sob o jugo dos sobreviventes; aos justos falecidos ele concederá a paz eterna, reinará com eles nesta terra e fundará a cidade santa. E esse reinado dos justos durará mil anos. As estrelas brilharão com mais intensidade e a lua não conhecerá declínio. Então a chuva descerá sobre a terra dia e noite como uma benção, e a terra produzirá todos os seus frutos sem labor humano.

Opondo-se a essa literatura profética, no final do século V, o célebre decreto de Gelásio, que distingue os escritos canônicos e os apócrifos, mantém o Apocalipse entre os livros canônicos mas lança a suspeita sobre os escritos milenaristas de Tertuliano, Lactâncio, Comodiano de Gaza e Vitorino de pettau, que haviam interpretado de forma literal o “livro das revelações”. A recusa pelas autoridades da Igreja de uma leitura literal do capítulo 20 do Apocalipse talvez explique porque a iconografia consagrada ao curso do tempo no “livro das revelações “omitiu na maioria das vezes a evocação dos mil anos do reinado terrestre de Cristo. Essa ausência é muito significativa. A Igreja oficial apagou o anúncio desse reinado.

Delumeau, Jean, 1923 — Mil anos de felicidade: uma história do paraíso — São Paulo: companhia das Letras, 1997.

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