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O PRECONCEITO HUMANISTA COM A IDADE MÉDIA

  1. O Preconceito humanista Muitos são os autores e estudos que concluem, sobretudo nos aspectos culturais e sociais, que a Idade Média foi uma era decadência. Há historiadores que publicaram estudos com atribuições ao período que vão desde “aquele em que a humanidade não tomou banho” (BESSELAAR, 1974; p. 89 – 95), ou a recorrente alegação de que seria esta a “Idade das Trevas” (FRANCO JÚNIOR, 2016; p. 17 – 19), ou até mesmo a “civilização da barbárie” (INÁCIO & LUCA,1988; p.7). Neste mesmo aspecto, encontra-se ainda menções sobre a falta de liberdade e de direitos das mulheres, perseguições sistemáticas das pessoas que pensavam diferente da Igreja Católica e sua “repulsa pela ciência e pela educação”. Por outro lado, identificam-se referências que atribuem a esta mesma Igreja o reconhecimento de dignidade humana a todos os homens, através de uma motivação à educação na Idade Média; fontes históricas atestam que, neste período, as universidades foram estimuladas semeando as bases da academia moderna; a criação de um direito canônico que pôde ser adaptado aos costumes senhoriais; ou ainda, no final da Idade Média, é possível enxergar as origens do direito internacional com a descoberta do novo mundo (PERNOUD 1996; p.63-74). Os hospitais, por exemplo, muitos historiadores testemunham que “parece dever-se à Igreja a fundação das primeiras instituições atendidas por médicos, onde se faziam diagnósticos, se prescreviam remédios e um corpo de enfermagem” (WOODS JR., apud ALVIN J. SCHMIDT, 2014; p.153). Os direitos humanos individuais, igualmente, tem grandes contribuições da Idade Média, assim como grandes conquistas nas artes, na literatura, nas instituições, na arquitetura nas relações internacionais, todas essas contribuições são visíveis e tem influência no nosso mundo contemporâneo (WOODS JR., 2014; p.179). Para efeito de melhor compreensão desta exposição, importa desvendar a origem desta imagem, que é o que se tem por senso comum histórico nos tempos contemporâneos. Primeiramente, é prudente compreender as influências e produções culturais do movimento humanista chamado renascença, principal fonte dos escritos e estudos utilizados para a qualificação (ou desqualificação) do impacto científico-cultural da Idade Média. A ocorrência do termo “Idade das Trevas”, por exemplo, é atribuída por Hilário Franco à renascença, como consequência de um sentimento identitário de superioridade cultural, em relação ao período medieval: No caso do que chamamos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito [depreciativo e anticientífico]. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados entre a Antiguidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento da civilização greco-latina e, portanto, tudo que estivera entre aqueles picos de criatividade artístico-literária de seu próprio ponto de vista, é claro não passara de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média” (FRANCO,2016: p.11).

Delumeau (2017), por exemplo, nos apresenta Petrarca (intelectual humanista italiano do renascentismo) como o criador da noção do tempo obscuro a respeito dos tempos medievais:

[…]que iria durante muito tempo dominar a interpretação da história medieval. Qualificava de «antiga» a época anterior à conversão de Constantino e de «moderna» a posterior, a qual perdurava ainda no século XIV. Ora, para Petrarca, esta idade moderna caracterizava-se pela «barbárie» e pelas «trevas»; ao mesmo tempo, nutria uma admiração apaixonada e quase romântica pelo passado romano”(DELUMEAU, 2017: p.73).

O movimento renascentista nasce sediado na península itálica na crise feudal (séc. XIV-XVI), sob a influência de egressos bizantinos. A presença bizantina pode ser observada em diversos períodos da história europeia. O imperador romano Justiniano (em 535 d.C) terá começado a conceber um verdadeiro programa de restauração do império, que teve como grande alvo a Península Itália. Anos mais tarde (entre 541/42 e 552), a Guerra Gótica (535 d.C a 554 d.C) entraria no que pode se considerar uma segunda fase, com o Rei Totila (rei ostrogodo da Itália) contando com a cumplicidade dos Francos, valendo a Bizâncio a grande capacidade do General Narsés (um camareiro e eunuco pró-monofisita, que era o favorito de Teodora – Imperatriz bizantina – e um homem muito rico), o qual obteve vitórias decisivas em Busta Gallorum – batalha entre ostrogodos e bizantinos em 552, mesmo ano em que Totila encontrou a morte – e na batalha de Mons Lactarius (Salerno), no mesmo ano (MONTEIRO et al, 2016). Este sucesso significou a reentrada da Itália no Imperium Romanum e permitiu a Justiniano, em 554, a reorganização da região, com a promulgação da Constitutio (legislação imperial). Na Hispânia, Justiniano interveio a partir de 552, a pedido do rei visigodo Atanagildo, em revolta contra o rival Agildo; os Bizantinos aproveitaram para se apoderar de Cartagena, de Málaga e de Córdova, assim como do respetivo hinterland; um domínio que, todavia, não conseguiriam manter por muito tempo. Com a queda de Constantinopla em 1453, deu-se o surgimento do Império Turco Otomano, de modo que uma grande elite intelectual de homens bizantinos instruídos nas letras e nas artes migrarem para a Itália, levando para essa região muitos dos elementos da cultura clássica antiga, que fora preservada em Constantinopla. Com isso, exercendo uma grande influência na região da Itália, irromperam o primeiro elemento para o início do movimento renascentista (MONTEIRO; GONÇALVES; GOMES, 2016; p. 64-66-70), além da influência que os cruzados receberam do império bizantino no período das cruzadas (ROPS, 2014; p. 533). A região de Florença, na Itália, foi o epicentro do novo movimento renascentista. Esta cidade tinha o prestígio de ser a base de um movimento de renovação cultural, baseado no humanismo e na reinterpretação dos valores greco-romanos. A conjuntura histórico-sociológica foi a causa do pioneirismo italiano, fazendo-o um grande centro comercial; a consequência foi o formação de uma poderosa classe mercantil, bem como intensa atividade urbana e cultural, herança da antiguidade romana: obras, movimento e história. Dirá-nos o renomado medievalista Delumeau que “o renascimento definiu-se a si mesmo como um movimento virado para o passado – sentido aparentemente oposto ao do nosso mundo moderno, virado para o progresso. O Renascimento queria regressar às origens do pensamento e da beleza” (DELUMEAU, 2017; p.73). A tendência de um discurso de competição dos renascentistas em relação à produção cultural do medievo gerou, entre outras coisas, um arcabouço intelectual de “correligionários” de pensamento convergente e mutuamente referenciado e, por isso, não suficientemente profundo e abrangente a respeito da Idade Média. Há que se considerar que, a consequência disso é a limitação da intelectualidade dos grandes expoentes renascentistas. Delumeau dirá, à respeito do mesmo Petrarca – a quem se atribui a tese do obscurantismo medieval – e suas limitações nas letras que “[…]continuava Cortese, a informação que chega aos dias atuais é de que Petrarca não escrevia em latim suficientemente clássico. Porque nos devemos admirar? «Ao homem nascido no lodo acumulado por todos os séculos, faltavam os ornamentos da arte de escrever. Desde então, fizeram-se progressos” (DELUMEAU, 2017; p.74). A renascença avançou também em outros países europeus, o que se deu a partir do final do século XV. Adotou-se também fora da Itália a noção de um renascimento literário alcançado pelo regresso aos autores da antiguidade. Fazendo uso de formas mais terrenas, imanentistas e concretas, o humanista tinha características bem definidas a respeito de pensar a ciência, a moral, a religião com uma preocupação voltada totalmente ao homem e seu bem-estar individual. Antropocentrismo, resultado desse movimento filosófico-cultural, é aquele caracterizado pelo homem que passa a ser visto como o centro do Universo, e a negação do teocentrismo medieval foi uma das suas características principais, além do individualismo social, motivador da valorização da capacidade de criação e o espírito de competição; o que parece ser a mola propulsora do capitalismo moderno. O racionalismo (característica do antropocentrismo) ganhou uma posição de destaque ao colocar a ciência numa posição superior à religião, onde o experimentalismo passa a estar acima da fé (dogmas). Delumeau nos informa sobre um francês, Jean Despautière, no prefácio do seu Ars versificandi (1516), reconhecia sem dificuldade que tinha sido Petrarca “quem, não sem inspiração divina, inaugurara, por volta do ano 1340, a guerra declarada aos Bárbaros e, lembrando as musas esquecidas, estimulara vigorosamente o estudo da eloquência” (DELUMEAU, 2017; p.74). Todavia, segundo a informação de Delumeau, acreditavam os renascentistas que estavam em uma “guerra aos Bárbaros”. Daí a importância de Erasmo, estamos falando aqui de Erasmo de Roterdã, muitas vezes considerado fora da península itálica de acordo com a expressão de Guillaume Budé (carta de 1517), como co-pai do começo que se deu no nosso tempo». Esta opinião era partilhada por Jacques Charron (ator e diretor de cinema francês) que, quando reeditou os Adágios em 1571, afirmava no prefácio: «Ele [Erasmo] foi o primeiro que resgatou as boas letras na época em que começavam a renascer e a emergir do seu lodo bárbaro. Todavia, com a ajuda do orgulho nacional, foi com Francisco I (Rei da França) que muitos escritores franceses atribuíram o renascimento das letras no seu país. Jacques Amyot dedicava a Henrique II a sua tradução das Vidas de Homens Ilustres, de Plutarco, e declarava: «O grande rei Francisco, teu pai, fundou feliz mente as boas letras e fê-las renascer e florescer neste nobre reino.>> Mas o termo «Renascimento» tem ainda uma ressonância estética que deve aos humanistas e aos artistas da época. A este respeito, Filippo Villani, que compôs no final do século XIV um Livro dos cidadãos famosos da cidade de Florença (DELUMEAU,2017; p. 74). Como pudemos verificar os renascentistas tinham um elevado espírito corporatista e contemporâneo, beirando prepotência. Desenvolveram as bases de seu movimento cultural em uma visão revanchista para com a Idade Média, desconsiderando a contribuição de um passado composto por grandes homens e mulheres que construíram as letras e uma arte. Ainda sobre as mesmas artes Filipo Villani, o mesmo, em sua obra faz o elogio dos pintores florentinos «que recuperaram as artes anémicas e quase extintas», a começar por Cimabue que soube reconduzir a arte à semelhança com a natureza – ambos filhos do medievo. Depois dele, estando assim aberto o caminho para uma arte nova, Giotto, que não só considera a comparação com os ilustres pintores da Antiguidade, mas que os supera em talento e em gênio, devolveu à pintura a sua antiga dignidade e o seu mais elevado renome.

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