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OS BANHOS NA IDADE MÉDIA

Há alguns dias li um texto no Facebook que começava assim: “Tomar banho na Europa era considerado heresia”. Como sempre, é o tipo de texto que faz sucesso, todavia, devemos refletir sobre o porquê de tantas mentiras serem tão bem aceitas pela turba. Essas informações nunca trazem uma bibliografia acadêmica sobre o assunto, claro! A mentira não pode deixar rastros para os ignorantes descobrirem que são apenas massa de manobra. Nesse caso o motivo é criar um senso comum que odeie o passado; a pretensão é que vejam o passado como algo nojento e ridículo, indigno sequer de ser “escavado”. Vamos discorrer sobre uma bibliografia de referência a respeito do assunto dos cuidados do asseio pessoal na Idade Média.

Vejamos a seguir o que a historiadora Régine Pernoud nos traz através de documentos primários do medievo: “Espantar-se-ão talvez de encontrar mencionados nos inventários, como fazendo parte do mobiliário, o fundo-de-banho ou tapete-banheira, espécie de moletom que guarnecia o fundo das banheiras, para evitar as farpas quase inevitáveis quando o fundo é de madeira. É que efetivamente a Idade Média, contrariamente ao que se julga, conhecia os banhos e fazia largo uso deles; ainda aqui, conviria não confundir as épocas, atribuindo indevidamente ao século XIII a porcaria repelente do século XVI e dos que se lhe seguiram até aos nossos dias. A Idade Média é uma época de higiene e limpeza. Um dito de uso corrente fala bem daquilo que era considerado como um dos prazeres da existência: ‘Caçar, jogar, lavar, beber- isto é viver!”.

Continuando com nossa grande historiadora — “quando se entra em casa; sempre no Ménagier de Paris, se recomenda a uma mulher, para conforto e bem-estar do seu marido, que ‘tenha um grande fogão para lhe lavar muitas vezes os pés, reserva de lenha para o aquecer, uma boa cama de penas, lençóis e cobertores, barretes, almofadas, meias e batas limpas”. Os banhos faziam parte da cultura medieval, e isso era um cuidado que vinha desde a mais tenra infância: “Maria de França recorda-o num dos seus lais: “Pelas cidades em que erravam / Sete vezes ao dia repousavam A criança faziam aleitar, / Deitar em Lençóis limpos, e banhar-se”.

“Se não se tomava banho todos os dias na Idade Média (poder-se-ia afirmar que se trate de um hábito generalizado na nossa época?), pelo menos os banhos faziam parte da vida corrente; a banheira é uma peça do mobiliário; não passa muitas vezes de uma simples tina, e o seu nome, dolium, que significa também tonel, pode prestar-se a confusões. A abadia românica de Cluny, que data do século XI, não comportava menos de doze salas de banho: células abobadadas contendo outras tantas banheiras de madeira. Gostava-se muito de ir, no Verão, relaxar para os rios, e as Horas muito ricas do Duque de Berry mostram aldeões e aldeãs a lavarem-se e a nadarem num belo dia de Agosto, na mais simples indumentária, pois a ideia de pudor de então era muito diferente da que temos hoje em dia, e tomava-se banho nu, tal como se dormia nu entre os lençóis”.

Existiam banhos ou estufas públicas, que eram muito frequentados; o Museu Borély, em Marselha, conservou uma tabuleta de banhos em pedra esculpida que data do século XIII, Paris; o Paris de Filipe Augusto, contava vinte e seis banhos públicos, mais do que as piscinas da Paris atual. Todas as manhãs, os proprietários dos banhos mandavam «apregoar» pela cidade: “Ouvi o pregão matinal: / Senhores, banhas-vos / E lavai-vos sem delongas: / Os banhos estão quentes, e é sem mentir. Guillaume de Villeneuve, Crieries de Paris.”

“Alguns exageravam mesmo: no Livre des Métiers de Étienne Boileau, prescreve-se: «Que ninguém apregoe nem mande apregoar os seus banhos até ser de dia. Estes banhos eram aquecidos por meio de galerias e de condutores subterrâneos, procedimento semelhante ao dos banhos romanos. Alguns particulares tinham mandado instalar em sua casa um sistema deste género, e no palácio de Jacques Coeur, em Bourges, ainda hoje se pode ver uma casa de banho, aquecida por condutores muito parecidas do moderno aquecimento central; mas trata-se, evidentemente, de um luxo excepcional para uma casa particular.”

É a disposição que se encontrou também nos banhos de Dijon, onde as galerias correspondiam a três salas diferentes: a sala de banhos propriamente dita, uma espécie de piscina e o banho de vapor; os banhos, na Idade Média, são com efeito acompanhados de banhos de vapor, tal como nos nossos dias as saunas finlandesas, e o nome de estufas que lhes era dado indica suficientemente que uma coisa não era separada da outra. Os cruzados trouxeram para o Ocidente o hábito de acrescentar a isto salas de depilação, cujo uso aprenderam em contato com os Árabes.

E os banhos públicos eram muito frequentados. Podemos mesmo espantar-nos de ver, no século XIII, alguns bispos censurarem as religiosas das cidades latinas do Oriente por irem aos banhos públicos, mas isso prova que, não tendo casas de banho instaladas nos seus mosteiros, elas não deixavam por isso de conservar os seus hábitos de limpeza. Em Provins, o rei Luís XIV mandou construir, em 1309, novos banhos, uma vez que os antigos já não serviam, “ob affluentiam populi” (por causa do crescimento da população); em Marselha, tinha sido regulamentada a sua entrada e fixado um dia especial para os judeus e outro para as prostitutas, para evitar o seu contacto com os cristãos e as mulheres respeitáveis”.

A Idade Média conhecia igualmente o valor curativo das águas e o uso das curas termais; no Roman de Flamenca, vê-se uma dama alegar enfermidades e pedir ao seu médico que lhe prescreva os banhos de Bourbon-l’Archambault, para poder ir juntar-se a um belo cavaleiro.

Tudo isto está evidentemente longe das ideias aceitas a respeito do asseio na Idade Média e, contudo, os documentos existem e estão disponíveis. O erro proveio de uma confusão com as épocas que se seguiram, e também de certos textos cômicos que foram indevidamente tomados à letra.

Langlois fez acerca disto uma observação muito judiciosa: «Houve quem se espantasse de encontrar, diz, no Chastoiement de Robert de Blois, certos preceitos de asseio e de conveniência elementares que podem parecer assaz inúteis para damas que se não devem supor desprovidas de educação. ‘Não limpem, diz por exemplo o porta, os olhos à toalha, nem o nariz; não bebam demais’. “Tais conselhos fazem-nos sorrir. Mas o que importa saber é se estamos perante índices da grosseria intrínseca da antiga sociedade cortês, ou se não terão sido formulados pelo seu autor, precisamente, para provocar o sorriso, e se os homens do séc. XIII não sorririam disso como nós, não se deve tomar isto a sério”.

É mais ou menos como se dissesse hoje: «Se forem convidados para uma recepção de embaixada, evitem cuspir no chão e apagar o cigarro à toalha»; há que contar com o humor, sempre presente na Idade Média, ao contrário, o refinamento dos costumes foi bastante avançado. Não só eram gerais hábitos elementares como o de lavar as mãos antes das refeições — na parábola do mau rico, vemos este impacientar-se porque a mulher, lenta a lavar as mãos, o retarda na ida para a mesa , mas ainda eram apreciados certos preciosismos, como o uso de taças para lavar as mãos na mesa. O Ménagier de Paris dá assim uma receita “para fazer água de lavar as mãos à mesa”:

“Ponha-se a ferver salva, em seguida escorra-se a água e faça-se arrefecer até mais do que morna. Ou se põe ao de cima camomila ou manjerona, ou se utiliza rosmaninho, e se põe a cozer com cascas de laranja. Também as folhas de loureiro são boas”. Para que se tenha sentido necessidade de fornecer tais receitas, é preciso que as donas de casa tenham levado muito longe os cuidados com o interior da casa e o sentido da apresentação.

A mesma obra fornece esclarecimentos sobre a maneira como eram tratados os hóspedes ordinários do lar, quer dizer os criados, cuja sorte não era para grandes lamentos, a julgar pelos textos da época: “Às horas pertinente, mandai-os sentar à mesa e dai-lhes alimentos de uma única espécie de carne, largamente e abundantemente, e não de várias, nem deleitáveis ou delicadas, e servi-lhes uma só bebida alimentícia e não molesta, vinho ou outra, e não várias e admoestai-vos para que comam muito e bebam bem e abundantemente […] e após o seu segundo labor e nos dias de festa, que tenham outra refeição, e seguidamente, a saber nas vésperas, que sejam saciados abundantemente como antes, e largamente, e, se a estação o requerer, que sejam aquecidos e postos a contento”. Em suma, três refeições ao dia, uma alimentação simples, mas sólida, e, como bebida vinho. É o que sobressai igualmente dos romances de ofícios, onde se vê os burgueses abastados comerem com os criados à mesa e alimentá-los do mesmo modo que a si próprios, como já não se pratica senão nos nossos campos. A dona de casa deve estender mais longe a sua solicitude: “Se um dos vossos serviçais cai em enfermidade todas as coisas comuns postas de parte, pensai vós própria nele muito amorosamente e caridosamente, visita-o várias vezes, e pensai nele ou nela muito curiosamente, avançando a sua cura”.

Ela deve igualmente pensar nos «irmãos inferiores», nesses animais domésticos que parece terem sido muito mais numerosos então do que nos nossos dias: não há miniatura de cenas de interior ou de vida familiar onde não figurem cães saltando ao pé dos donos, rondando em volta das mesas nos banquete, ou ajuizadamente estendidos aos pés da dona ocupada a fiar: em todos os jardins se veem pavões desdobrarem ao sol a cauda luzidia. Assim, o autor do Ménagier recomenda à mulher que «mande cuidar principal, cuidadosa e diligentemente dos animais domésticos, como cãezinhos e passarinhos de gaiola: e pensai igualmente nos outros animais domésticos, pois não podem falar, e por isso deveis falar e pensar por eles».

Como podemos observar, a civilização da Idade Média tinha por hábito corriqueiro o banho, e os seus animais não dormiam nas mesmas camas que seus donos, mas eram muito bem tratados. Todavia, importar frisar que, se o leitor deseja conhecer história verídica e fundamentada em dados e documentos, procure quem seja um pesquisador sério; não tome por verdade que tudo quanto se acha na internet. Seja crítico, observe as bibliografias para saber que se trata de um artigo sério, e tente ao menos imaginar o meio e as intenções daqueles que os divulgam. Não seja um “bobo da corte”.

PERNOUD, Pernoud. Luz sobre a Idade Média. Europa-América publicações Ltda, Lisboa, 1996.

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