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OS VIVOS E O CUIDADO COM OS MORTOS. AGOSTINHO E PAULINO DE NOLA 


EXISTE COMUNICAÇÃO COM OS MORTOS?

AGOSTINHO E PAULINO DE NOLA

Em 421 , Paulino, bispo de Nola, na Campânia, escreve a seu amigo, o bispo de Hipona, que ele aquiesceu ao desejo de uma nobre dama, Flora, de mandar sepultar seu filho morto na basílica de São Félix de Nola; ele supõe que a sepultura ad sanctos beneficie os mortos e pede a opinião de Agostinho. A resposta que este acaba por lhe enviar é um verdadeiro tratado sobre o “cuidado que é precise ter com os mortos”

(De cura pro mortuis gerenda, v, 42 1124).”

Agostinho não partilha a opinião de Paulino. Os cristãos, segundo ele, não devem preocupar-se com o corpo dos mortos, como fazem os pagãos. Somente a alma deve importar-lhes e, para a sua salvação devem orar a Deus. A pompa dos funerais, a condição da sepultar têm importância apenas para os vivos. que ajudam a consolar (“magis sunt vivorum solacia quam subsidia mortuorum”, cap. 11).”


Por todos os meios, Agostinho esforça-se em negar a possibilidade de uma comunicação entre os vivos e os mortos. Assim como os vivos ignoram o destino do morto no além, este não sabe mais nada dos vivos.

Ele deve admitir, porém, baseado em certos relatos de visões que lhe foram narrados, que mortos podem aparecer, seja em sonho, seja “de outra maneira“, para dar aos parentes uma informação e mesmo indicar o que se deve fazer quanto à sua sepultura. Ele conta no capitulo x a história que ouviu em Milão: quando credores desonestos reclamavam de um jovem a dívida que seu pai teria negligenciado pagar antes de morrer, o morto apareceu em sonho ao filho para lhe revelar onde se encontrava o recibo do pagamento.

Mas tal aparição se produz à revelia do morto, da mesma maneira que podemos sonhar com um homem vivo sem que este tenha conhecimento algum disso. Assim, no momento mesmo em que, em Milão, Agostinho ouvia esse relato, ele próprio aparecia em sonho, a sua revelia, ao retórico Eulógio de Cartago. Este, não conseguindo compreender uma passagem difícil de Cícero, sonhara que Agostinho ditava-lhe a solução. Naturalmente, Agostinho ignorava tudo desse sonho: “Do outro lado do mar, eu fazia no mesmo momento coisa muito diferente, talvez estivesse dormindo, em todo caso, não me preocupava de modo algum com seus assuntos” (cap. x1).

“Como isso é possível?”, pergunta Agostinho. Como com frequência quando levanta uma questão difícil que não quer eludir, ele contenta-se em reconhecer. “Não sei”. De fato, a redução das aparições dos mortos ao caso dos sonhos que os vivos têm uns com os outros permite-lhe negar que os próprios mortos possam, em espírito, deslocar-se e intervir realmente no espírito dos vivos. Em todos os casos, aquele que aparece não é o homem, vivo ou mono, nem sua alma, nem evidentemente, seu corpo. É uma “semelhança do homem” (similitudo hominis), uma “imagem” (imago), totalmente estranha à consciência daquele que ela representa vivo.

Os mortos, assim como os vivos, ignoram, portanto, que os que sonham os veem “imaginariamente” (imaginaliter) (cap. XII). Os espíritos dos mortos (spiritus defunctorum) não têm nenhuma razão para imiscuir-se com os vivos (cap. XIII): é, de resto, o que mostra bem a parábola de Lázaro, que Abraão não autorizou a aparecer aos irmãos do mau rico. Por certo, o rico preocupava-se com seus irmãos, mas não conhecia suas preocupações na terra. Da mesma maneira, preocupamo-nos com nossos nossos mortos, mas sem saber o que acontece com eles(cap.XIV).


Se os mortos ficam sabendo alguma coisa a respeito dos vivos, só pode ser por intermédio dos anjos, que se aproximam de uns e dos outros e asseguram uma mediação entre o reino divino, que está fora do tempo, e o mundo dos homens, que está no tempo. E, se é preciso admitir, por exceção, a possibilidade de algumas aparições, elas não têm relação com mortos ordinários, mas com personagens excepcionais, como os santos. Suas aparições são simétricas ao raptus de São Paulo, arrebatado da terra ao paraíso (2Cor, 12,2). E, de alguma maneira, o caminho inverso ao tomado, segundo o Antigo Testamento, por Samuel, quando foi evocado pela pitonisa de En Dor e previu a Saul sua morte próxima, e por Moisés e Elias (quando da transfiguração do Cristo) (cap. xv). É o caso também de santos cristãos, que apareceram excepcionalmente: “Nós soubemos”, reconhece Agostinho não sem prudência, “por rumores não incertos e por testemunhos certos, que São Félix apareceu durante o cerco de Nola pelos bárbaros”. A prudência da expressão é bem reveladora: tudo deve separar os mortos ordinários, cujas aparições lembrariam em demasia o paganismo antigo, dos santos, os mortos de elite do cristianismo e da Igreja: “É preciso compreender que, por efeito do poder divino, os mártires podem imiscuir-se nas coisas dos vivos ao passo que os defuntos, por sua própria natureza, não o podem” (cap. XVI)Em definitivo, a explicação de todos esses fenômenos baseia-se nos poderes de mediação dos anjos: são eles que, pela graça de Deus, fazem o espírito dos homens ver, inclusive no sono, as imagens “in effigie corporis”, sob a aparência do corpo, daqueles, vivos ou mortos, com quem têm ou tiveram uma dada relação (cap. XVII).

Schimidt, Jean-claude, os vivos e os mortos na sociedade medieval.

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